Demorei quase um mês exato para
voltar a escrever.
Ainda assim, escrevo, escrevo,
escrevo, e quando vejo só tem três parágrafos. Apago mais do que escrevo.
Então, talvez, escrevendo o que
de fato quero confessar, me ajude um pouco a me libertar dessa indecisão que
raramente tenho na hora de escrever algo. Qualquer coisa.
Epitáfio. E não é a música dos
Titãs.
Bom, se quero escrever um
epitáfio, claro que alguém morreu.
Minha avó.
Ainda dói. Não tanto como a minha
mãe deve estar sentindo, mas ainda assim, dói lembrar da minha avó. Tudo o que
sou hoje, todos os acertos que já fiz, os aprendizados com os meus erros, devo
muito a duas mulheres: minha avó e minha mãe.
E minha avó se foi, no dia 27 de
maio de 2018. Talvez às 3:00 da manhã. Ou antes. Nunca vou me lembrar.
Mas enfim, não é bem isso que vim
desabafar.
Epitáfio. Essa palavra soa
estranha, principalmente pensar que é a mulher forte que minha avó sempre foi.
A vida dela não foi exatamente um drama. Não, não para minha avó. A vida dela
era sempre uma tragédia, mas aquela mulher nunca via, e vivia como se fosse.
Para ela, a vida que ela estava levando já era o suficiente para seguir em
frente, e sempre ser melhor.
A morte nos faz ver a vida de uma
forma estranha. Diferente.
Não vou mentir e dizer que a
minha relação com a minha avó era a das melhores, principalmente nos últimos
anos. Nem a da minha mãe com o dela. As duas viviam brigando, e eu ficava com
raiva disso. Tive raiva da minha avó por muitas e muitas vezes.
Como dói pensar quantas vezes eu
a ignorei por pura raiva. Como dói.
Fazia tempo que não escrevia
tanto assim, e pensar que ainda tenho muito mais para escrever.
Logo depois que o SAMU foi
embora, a morte confirmada, o corpo da minha avó esfriando na cama, eu ainda
não estava acreditando exatamente o que tinha acontecido. Por mim, a minha
cabeça ainda estava no meu quarto, traduzindo o jogo para o meu irmão, que se
não me engano estava em inglês. Acho que sim. Antes estava editando as minhas
histórias no computador.
Minha cabeça ainda não estava
ali, apesar de ficarmos por meia hora ou mais tentando ver se minha avó estava
viva ou não, o SAMU ter vindo rápido, eles dizerem que minha avó não estava
mais viva, e ficar mais meia hora para a carta de óbito.
Minha cabeça avançou alguns
minutos, quando tentava despertar a minha avó, que respirava com dificuldade,
que parecia estar sofrendo.
Era madrugada, eu não tinha
dormido, e minha mãe tinha saído com meu irmão para resolver o velório,
enterro, caixão, cemitério e todas essas coisas.
Eu fiquei com meu avô, e ouvi-lo
foi difícil.
Mas ainda assim, a ficha não
tinha caído. Não ainda.
Passou o velório, a missa, o
enterro.
O enterro. Ali eu vi que não
teria mais volta, porque por mais que minha avó estivesse viva, não conseguiria
sair dali.
Droga, pensei cada coisa, porque
ainda achava que minha avó estaria viva.
Mas ainda assim, não acreditava
na morte.
A morte é uma coisa estranha.
Todos dizem que a ficha demora a cair quando perdemos alguém importante, mas a
verdade é que a Morte são várias e várias fichas, e cada hora que passa, cada
dia, cada semana, é uma ficha que cai. Uma, e apenas uma. Uma de centenas,
milhares, milhões. Fichas que a gente não sabe quando vai terminar de cair.
Cada dia que passava, cada fato
que passava era uma ficha, ou um soco no estômago que foi mais o que senti
mesmo.
E a cada momento desse, a morte
parecia mais real, e mais um sonho ao mesmo tempo.
Na verdade, acho que a morte é pura
dualidade.
O tempo parecia não ter passado.
Hoje mesmo, quase um mês (faltando um dia apenas), faz parecer que aconteceu
três meses atrás, mas ao mesmo tempo, parece que foi ontem que meu avô veio me
chamar para dizer que a sua mulher estava estranha.
Eu tinha vivido mortes na família
já. Minha bisavó, a mãe dessa minha avó tinha falecido um pouco antes de nós
virmos para o Brasil, e minha mãe disse que era só ela esperar mais duas
semanas e estaríamos aqui. Lembro que queria tanto conhecer a minha bisavó, que
chorei muito de tristeza.
Logo que chegamos, na verdade um
pouco depois, morreu um primo da minha mãe, e eu o adorava, e apesar de triste,
não senti tanto.
Depois veio mais algumas mortes
de quem eu conhecia. Até vir a morte da minha segunda bisavó, nesse caso a mãe
do meu avô. Essa eu senti. Ela morava em São Paulo, e íamos raramente para lá,
mas ainda assim eu senti.
Só que não teve nada a ver com o
que aconteceu agora. Nada dessa dualidade dolorosa. Nada de dor que persiste em
ficar, nada da falta insuportável, porque morávamos na mesma casa.
Como eu sou a primogênita de
dois, minha mãe divorciada, minha avó acabara de falecer, eu acabei tomando a
frente em alguns momentos. Eu tive que ajudar minha mãe em muitas coisas, tomar
decisões que eu nunca tomei.
E só duas semanas depois da morte
da minha avó, eu já me sentia como se minha mente tivesse envelhecido até a
minha idade física. 21 anos, esse ano, daqui a poucos meses 22 anos. Até então,
para mim, na minha visão, ainda tinha 15 anos, e eu me odiava por isso.
Os meus 21 anos na cabeça veio
como uma avalanche. A morte, as decisões, a firmeza que já tinha, mas que tive
que melhorar para dar o apoio a minha mãe, ao meu avô, ao meu irmão, e ainda
assim me manter firme por mim mesma.
Ainda dói. Ainda estou sentindo
muito. Ainda parece que estou levando os socos no estômago. Ainda parece que vou
envelhecer em um tempo extremamente rápido.
Epitáfio. A morte realmente nos
faz ver a vida de uma maneira diferente.
Não são as cinco fases da perda.
Não são apenas essas. Não são exatamente essas.
São muito mais: culpa, dor,
raiva, vazio, barganha, mais culpa, mais dor, negação, muito mais culpa,
depressão, a dor cada vez pior, a raiva vindo mais forte do que antes, muito
mais coisas misturadas.
Ainda não cheguei à aceitação.
Não. Eu ainda estou um pouco tonta, perdida, dolorida, ferida, com raiva, com
mais culpa do que nunca, e o vazio continua em persistir.
Eu entendo a morte dela. Entendo
que não tem mais volta. Eu entendo que vou sofrer muito mais com ela, mas ainda
assim não aceitei a morte dela.
A minha vontade é de pirar,
xingar, gritar. Por um momento apenas. Por um único momento, da qual olharia
para ela e a abraçaria uma vez mais. Faria qualquer coisa por um único, um
mísero único momento.
Epitáfio.
Quem sabe um dia ainda consiga
explicar a bagunça que está dentro de mim, mas por enquanto, o epitáfio vai
terminar nessa bagunça.